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Spengler Marx e o meu compadre Cio Ful
11/11/2015
Sem rádio, televisão, sem boas estradas, as notícias dos acontecimentos do mundo levavam dias, semanas, meses para chegar aqui no semiárido do Nordeste, onde moro. Pouco importava, todavia, porque o interesse imediato da coletividade estava voltado para o consumo dos bens essenciais para suprir a existência de cada um, aqui produzidos. Pesava a superestrutura jurídica e ideológica de que fala Marx, que se insinuava, acontecia como decorrência da vivência coletiva do fazer e do ter, enfeitava a cabeça e os pés dos que pagavam e desfrutavam usos, fruto da guerra surda, dissimulada ou declarada, conhecida na violência de entreveros.
Assim era a vida, e tudo ficava por conta de premonições e anátemas. A consciência política da realidade que nos é imposta, de modo cruel e impassível, motivou o protesto do patriota Oduvaldo Vianna Filho que em 1974, antes de falecer denunciava e argumentava: “Reduzir uma sociedade de 100 milhões de pessoas a um mercado de 25 milhões, exige um processo cultural muito intenso e muito sofisticado. É preciso embrutecer esta sociedade com uma força que só se consegue com refinamento dos meios de publicidade, com um certo paisagismo urbano que disfarça a favela, que esconde as coisas.”
Tal realidade, produzida por descuidados ou cooptados intelecutais então atuantes no cenário cultural, arrancou, mutatis mutandis, o oportuno grito de protesto do filósofo Olavo de Carvalho: “foi preciso que este país decaísse muito para que se pudesse assistir a este triste espetáculo...”
Aí se esconde, portanto, a manipulação de idéias e de processos, que absorve acriticamente uma coletividade dominada pela incerteza, mas enfatuada, incapacitada intelectualmente para a reflexão e o protesto. Um cenário tragicômico de faces e fácies. Gritos de terror, risadas escancaradas.
Volto para a ideia inicial deste comentário: falar do nordeste brasileiro, dos vales e montanhas verdejantes − outro mundo, quero dizer o outro hemisfério do planeta, inalcançável, lenda para os do lado de cá. Sem fronteiras marítimas ou terrestres, os estrangeiros, para nós, entrevistos num passado remoto, a rigor, não passavam de ficção. Obra de ciganos, que conhecíamos, falavam língua arrevesada, as suas mulheres usavam roupas cerimoniosas, de tecido colorido em motivos florais, figurativos, cobrindo os braços e os pés. Eles previam romanticamente o destino, o futuro dos que pagavam para saber da propriedade e do amor principalmente.
Na liturgia católica os padres obtemperavam: quanto aos ricos o perdão alcançado em indulgências; em contrapartida elevavam os pobres à gloria do céu. Astrobão, Equiseque, Safora e outros nomes estranhos eram reis e rainhas, larápios e cobradores de impostos, cada um na sua circunstância histórica da submissão, da magnificência e do esplendor. O laço de corda da forca pendia sobre a cabeça de todos. Nada mais azado para frutificar a tese do progresso e da decadência. A vida, porventura, não se sustenta no enfrentamento dos opostos?
A literatura, como sempre a minha fonte, revelou-me no romance de Virginius da Gama e Melo “A Vítima Geral” num momento da vida paraibana, um personagem spengleriano, cujo comportamento social reproduzia uma “ideia desacreditada... a negação total da ideia de progresso, segundo a qual o progresso integral da humanidade nas suas relações com a evolução global do cosmos resulta de uma necessidade intrínseca do próprio processo histórico que caminha em direção a um fim imanente da história”, que renasce na tese controvertida do ianque-kamikaze Fukuyama, que a reedita. Era e tornou a ser evidente a decadência do ocidente.
Mas a razão para mim, está com o meu compadre o negro gordo caçador compadre Ciço Fulô, que na dúvida, interrompe e indaga para se certificar do assunto: “Mas adonde nós estava?” Nada mais plausível e coerente. Assim nasceu a tese da decadência do lugar ocidente de Oswald Spengler. Compadre Ciço argumenta a superação da roça, da propriedade − momentos do desenvolvimento social −, no retorno da sociedade ao comunismo primiivo porque a caça não tem dono, é da natureza, é de Deus, é de todos. E é do que ele cuida.
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