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  • Seca braba

    30/03/2015

     Escrevi em nota divulgada neste blog: sobre a grande a seca de 2012, que se estendeu, e a enfrentamos ainda em 2013. E perigosa, como dizemos por aqui para realçar os riscos. Mas não me “retirei”, não migrei como na literatura fizeram os sertanejos: Valentin e Fabiano ; dividi tarefas. Novos tempos, surpreendendo todos com novas dificuldades. Deixei o vaqueiro Neguinho, homem de confiança, na fazenda velha onde concentrava a totalidade de minhas atividades na pecuária e fixei morada eventual numa chácara na margem do açude de Coremas. Água muita, espaço pequeno. Daria para superar a situação de emergência? Era somente o que tinha e podia me valer no momento crítico. Tentei implantar vazantes de ca-pim, alugar roças vizinhas para salvar o rebanho de gado, ovelhas e cabras, além de animais de sela e de carga. Parte aqui, parte acolá, desdobrava-me. Mas coisa pouca de sertanejo do semi-árido, esclareço, porém, era tudo que eu possuía. 

    O povo arisco, assistido pelo novo modelo administrativo, salvou-se da dependência penosa, esbanja liberdade em múltiplas facetas, cristalinas na afirmação de novos direitos, fundadas nas teses do novo poder no país, baseado na caridade não na efetivação de garantias legais. Faltava aos proprietários, dinheiro para projetos voltados para a superação da dificuldade, contratar trabalhadores, retomar o processo produtivo. 
    As pessoas adultas fazem pouco caso da situação, concentraram-se nas cidades, incapazes de entender direitos e deveres, e os que ainda permaneciam na zona rural, dirigiam motos, buscavam inserir-se em novas ações ditas de inclusão social, que lhes rendia míseros recursos para o seu sustento. Os jovens desfrutam o justo lazer que os seus antepassados não tiveram: curtem bandas, e com camisa no ombro, desfilam pelas calçadas, jogam sinuca. Outros são recrutados para a luta armada do tráfico de entorpecentes. Mas se reúne em grupos, definem e encaminham reivindicações em atos públicos, corajosamente. Enquanto isso, o país afunda no fracasso, na indiferença a olhos vistos.
    A imprensa subsidiada, em ações programadas, subliminarmente confunde todos. Afinal, o que nos restava: ao povo e ao governo? A sociedade fragmentada revelava-se par-ticipante em escalões. Mudanças que aconteciam, eram trazidas pela tensão social nascida na crise climática, levada para as assembléias de produtores. Algo parecido, mutatis mutandis, com a aguda percepção e denúncia de Walter Benjamim sobre a “... utopia de Fourrier... com a aparição das máquinas”, criando os malfadados falanstérios, levando o homem “... a relações em que a moralidade é supérflua.” Não é preciso dizer mais para esclarecer: aí está o Mensalão, a criminalidade invadindo todos os modos da vida social: pública e privada.
    Walter Benjamim acima citado, fala de um tempo de mudanças, que fizeram “Paris, Capital do Século XIX” citando um “Guide illustré de Paris” que explica o surgimento das famosas Galerias “... esta (a galeria) torna-se uma cidade, ou mesmo um mundo em miniatura”. Seriam os shoppings de hoje. As transformações sociais, nascidas e permitidas com novas tecnologias criando serviços e idéias: o uso do ferro que não era “aceito para as moradias” usado nas galerias, estações ferroviárias na construção civil. E completa com Michelet: “Chaque époque revê La suivante” .
    Pois é o que acontece por aqui. As máquinas e as “cotas” − reconhecimento inusitado de direitos −, afastam o homem do trabalho. A escassez de mão de obra dificulta a realização de projetos. Muita mudança e mais dissimulação de propósitos, fingimento mesmo. Os escolhidos e protegidos são outros, os vitoriosos, os que levaram os novos dirigentes ao poder, permitindo a prática da caridade não a definição de direitos, como realizadora da democracia, do republicanismo que apregoavam. Digo novo poder não novo governo, porque cada grupo faz o seu modelo, e proclamam os inconformados, que cada povo tem o governo que merece. Deixaram de lado a ciência, são movidos pela ganância do dinheiro, do enriquecimento pessoal.
    Infelizmente para nós, se a evolução do processo na França levou à democracia burguesa, entre nós copiou a fórmula da nominalidade sovietizante das exceções. Nesse cli-ma pessoal − permitam-me breve incursão na literatura para explicar os “meus porens”. A guerra política entre empregador e empregado, o surgimento e sobreposição de técnicas e práticas sociais, inevitavelmente nos avassalam. Vai com a consciência de cada um. A guerra entre as letras e as armas e as artes, de que tanto falo nos meus breves escritos. Tal lá, tal aqui, tal ontem, tal hoje, nas limitações históricas das mudanças, evocadas pelo Quixote. Mas sempre um passo à frente.
    “De ces palais les collonnes maquiques / A l´amateur montrent de toutes parts / Dans les objetes qu´étalent leurs portiques / Que l´industrie est rivale des arts” (ob.cit apud Nouveaux tableaux de Paris, ou observations sur les moeurs et usages des Parisiens au commencement du XIX. siècle: faisant suite ... Pillet, 1828 - 356 pages ... Google). Pois a seca além das dificuldades normais do período, pegou-me, envolvendo-me numa rixa literária, superpondo conceitos e informações tiradas de autores lidos, enfrentando o azar do arrom-bamento do maior açude da fazenda. Uma ocorrência incomum de chuva torrencial, tempestade na minha região, precipitou-se e arrombou mais de cinqüenta açudes numa noite só. Perdi os recursos essenciais para manutenção das atividades da propriedade rural: água e toda uma estrutura implantada de capim de vazantes, de pisoteio e de corte, além de moto-bomba, aspersores, rede elétrica, o baixio coberto de areia provocada pela água no estouro do rompimento da parede, impossibilitando o uso do terreno para plantio. 
    O Banco do Nordeste financiara recursos para manutenção do gado de leite. E o gado escoteiro? O restante do rebanho naturalmente teve o preço aviltado. Corri, rodei, procurei com insucesso órgãos do governo estadual e federal (EMATER, CONAB) e não consegui inscrição para aquisição mediante pagamento subsidiado em dinheiro, de rações, milho prin-cipalmente, disponibilizado pelo governo federal para os atingidos pelo desastre climático. Surpreendi-me, em face de ser considerado pecuarista e agricultor, em dia com suas obri-gações perante os órgãos fiscalizadores e assistenciais: vacinação de rebanho, seleção para leite e abate, obrigações financeiras com o Banco do Nordeste sem atraso, etc.
    Estamos no começo do mês de setembro, o primeiro dos “bê-rrê-o-brós=bro” (última sílaba) dos mais cruéis meses da seca: setembro, outubro, novembro, dezembro. Inviabilizada para mim a atividade rural, curto alguns livros na minha biblioteca modesta. Reencontrei do amigo velho Evaldo Gonçalves, “Ernany Sátiro”, um entre os grandes paraibanos entre políticos e escritores, e “Coiteiros”, de José Américo de Almeida, edição rara e oportuna de uma editora e coleção criadas por Adalberto Barreto, no formato livro-de-bolso, sobre o tema do Cangaço. Traz este volume à título de prefácio um estudo do mestre da universidade de Grenoble, tese sobre o cangaço, apresentada e aprovada na Sorbonne, que lhe valeu a conquista da cátedra. Valiossímo.
    Sou um leitor habitual do que me chega às mãos sobre o cangaço. Guardo como fonte de consulta e referência “Guerreiros do sol” do pernambucano Frederico Pernambucano de Melo, pela riqueza de informações, e considero-a inevitável e confiável referência “bíblica” sobre o assunto. E enriquecido com um prefácio de Gilberto Freyre. Arrisco-me pre-tensiosamente a recomendar os dois volumes citados aos aficionados no gênero e no assunto.
    Depois de tantos percalços, com fé exclamo: agora só Jesus! 
    2014 foi seco, 2015 apresenta-se de inverno fino e variado. Enfrentamos, acredito, uma mudança climática. E agora? Mas o sertanejo não perde a esperança: trovejou no carnaval e a cinza foi molhada.
    (Visitando a fazenda velha Lagoa de Baixo – setembro 2013)

     
     
     


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